A constatação de residir no lugar
das delícias a torna uma raridade. O humano médio cria necessidades desnecessárias
o tempo inteiro. Faz-se infeliz de alguma forma. Não seja pela ausência de bens
materiais, inferniza-se pela falta de beleza física, muitas vezes vista apenas
no próprio espelho. Ou encontra problemas nos filhos que não são perfeitos, culpa-se
por trabalhar e não dar atenção à prole, sofre pela morte do animal de
estimação, ou sofre porque não o tem, ou pela falta de determinada obra de
arte, fica de mau-humor pela falta de determinada roupa na hora da festa, os
serviçais não servem como deveriam, nada aproveitam do paraíso porque é
inseguro, vem o medo dos delinquentes, desconfiam da fidelidade do cônjuge, não
lhe agradam a nora, o genro. O que é tudo isso?
Existe uma mulher que sabe: moro no
paraíso, apesar de ser humana. Vou aproveitar para passar o verão na cidade.
É tão lindo isso que começo a
comparar com outras casas que já conheci, outras vidas... Vejo seguranças com
armas a proteger obras de arte. Vejo mulheres moças residindo em paraísos
necessitando de medicamentos para depressão porque nada importa da vida, nem a
beleza que lhes serve de casca as interessam mais, vejo acompanhantes dessas
mulheres ajudando-as a cuidar da casca para que não percam aquilo que pensam
interessar ao cônjuge, sinto compaixão por elas, pelo avião que as leva para
todo lugar e elas nada sentem, só aquele vazio de existir e o sorriso branco de
laser que a muito custo anuncia sua presença: é o que se espera delas, um
sorriso, o silêncio, a graça no caminhar, a não interferência. Mulheres zumbi.
Mas por que não podem se divertir no caminho? Minha amiga não consegue. Ela faz
terapia e permanece linda e lê. Tem um filho pelo qual não se interessa e muita
culpa por não se interessar. Me escreve emails enormes, culpados, pensando na
morte. Não se mata por causa do filho para o qual não para o qual não consegue
dar a menor importância.
Outra é uma senhora que tem um
Picasso em casa. E depressão. Entre o Picasso e a depressão e a depressão e o
Picasso, tem horas de súbita alegria. É bipolar. O marido, empresário, é
apaixonado por ela. Não sabe o que fazer para agradá-la quando está triste. O Picasso
foi uma tentativa. Ela soube agradecer devidamente um mês depois, para surpresa
do marido. Aquelas alturas, ele dizia aos amigos, com humor, que era casado com
duas mulheres, a santa e a diaba. Ninguém entendia. Dia desses, ela me
explicou. Quando está triste, quer muito sexo. O marido até se preocupa com a
tristeza. Mas gosta de muito sexo. Quando está feliz, quer muita festa, o
marido adora festas. Então, o casamento vai bem. Ela vive naquele sobe e desce,
entre felicidade e infelicidade vazias, e o companheiro adora suas duas
mulheres. Só que ele não sabe... ela está perdida... perdida... numa casa divina
e uma vida infernal.
...e quantas não tem Van Goghs, Monets, Picassos em casa...
ResponderExcluirComecei a ler Hiperestesia, e estou gostando muito.
Beijos.
p.s. Temos que nos encontrar uma hora dessas, para trocar palavras, ou apenas silêncios.